Fotografías © Sónia Marquès, e poema...

ABERTURA

Se há uma coisa que me parece luminosa e digna da mais linda aprendizagem, é o despertar. Sendo mais "terra-a-terra", porque meus escritos não são acessíveis a todos, minha linguagem e meu pensamento, pela manhã descobrindo cada pessoa ao acordar, sempre me pareceu a melhor forma de me sentir perto do outro, do ser humano. No entanto, minhas manhãs são alongadas, sempre e não se parecem com as manhãs "genéricas", que podem ser reproduzidas a baixo custo. Não, falo daquelas manhãs, todas minhas, em que o pensamento é o mais fluido, o mais ilógico para alguns, o mais preciso e livre, o mais puro. São aqueles rostos, a pele relaxada da noite, sem maquiagem, os olhos sem nenhum preconceitos, das imagens já prontas que a sociedade dar-nos, mas está tudo desfeito. Você tem que começar, refazer tudo e refazer o mundo torna-se brincadeira de criança.

Um dia, enviei um cartão postal de Boas Festas, mostrou minha cara de sono (de sohnos, de Sónia ?) com meu papagaio bebê, uma fêmea. Não havia nada que contasse a hora da filmagem, nem mesmo o que era esse bicho, cujas migalhas de sua comida ficavam grudadas sobre no bico, e eu, atenciosa, cabelos e rosto da manhã, tudo nesta refeição matinal. Aliás também não sabemos o que chamamos de manhã. Para alguns, algumas, o amanhecer é levantar-se às 4h, para outros ao meio-dia, para outros às 16h, as noites não têm igual, e cada noite é única, seja passada em solitário, a dois, a vários, em família, num deserto, numa canícula sufocante, ou numa noite fria sob as estrelas, ou numa masmorra, ou na rua num banco público ... Em suma, a fotografia não dizia nada de tudo isso. A única coisa que você poderia pensar é que tinha uma cara engraçada e um animal estranho e mal cuidado. Os papagaios bebês, como outros bebês, colocam o comido em todos lados !

É um exemplo, o do despertar. Este cartão também significava, por meio de um sinal escrita desejando a todos “Boas Festas”, que estava longe, muito longe; não porque quisesse, mas porque tinha que ficar em segundo plano. Assim como os militares, fui chamado para ficar em casa, confinado, não como se tivesse de esperar pelo fim da guerra, embora, mas como alguns lutadores que pensam e não estão armados, que devem ser protegidos. Então descobrir os seres pela manhã, é realmente descobri-los e compartilhar um momento de paz. Descobrir os seus entes queridos de manhã, sem o incómodo da vida deles, sem ruídos e boatos, sem nunca abrir um media, sem teledistância, è para mim estar o mais próximo possível das coisas e dos seus adventos, è estar em que há melhor e há potencial.

Não sou madrugadora. Mas sou de todas as manhãs do mundo.

O acontecimento mais marcante foi a obrigação de ser confinada, e vários anos depois observar, à medida que as manhãs iam passando, um confinamento súbito estendido a todos. Este cruzamento, do particular ao general, esta comunhão do tempo, significava, do meu ponto de vista, que mesmo os mais recalcitrantes para imaginar o isolamento, sofrido ou voluntário, por diferentes razões, se encontravam na mesma situação. Assim, já não existia a sensação de estar isolada do mundo, mas de fazer parte do mundo, em comunhão, vivida para alguns, para algumas, como uma restrição, e para outros, em todas as manhãs do mundo, como a partilha de uma situação pouco comum, mas que se tornou comum.

Há nessas atribuições da sociedade, de que diferença, uma anulação do efeito de deficiência que constituem estas atribuições por apriorismo. Quando a sociedade impõe um modo de estar junto que prejudica a todos, é anulada qualquer ideia da diferença, que se baseia em outra ideia : haveria privilegiados.

Com os privilégios abolidos, ainda era necessário reescrever a história, insistindo bem no facto de que os deficientes sofriam muito mais do que outros o confinamento. No entanto, a questão do "sofrer" nunca foi aprofundada, apenas do ponto de vista da privação de liberdade. Porém, muitos confinados, que já estavam confinados e submetidos a um confinamento pela sociedade de acordo com atribuições arbitrárias, experimentaram a liberdade de pensamento e viveram o confinamento generalizado, a todos , como um grande alívio, uma paz tão nova e indizível, que nem sequer pode ser descrita, sob pena de ser censurada.

Mas sim, o silêncio reencontrado, a paz interior, a suspensão de um estado de embriaguez forçado a consumir, o regresso às manhãs calmas, os motores desligados, a pausa mereceria ser renovada, uma nova forma de bem-estar no mundo.